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A derrocada do programa brasileiro de combate à aids parece reproduzir, em menor escala, o quadro de descontentamento que assola a conjuntura atual do país. A combinação de falta de diálogo com a sociedade civil, perda de capacidade técnica, baixo investimento, desconexão com a realidade da epidemia e decisões verticais de cunho conservador, imprimiu retrocessos que exigem agora novos rumos para a política.
Desaguadouro de um processo conturbado e traumático, o início da nova gestão à frente do Departamento Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde pode ser visto como oportunidade de retomada do debate franco, desde que inclua todos aqueles que têm expressado críticas e apontado soluções para a crise instalada.
Acelerou nos últimos dois anos a corrosão de pilares que davam sustentação à resposta brasileira à aids. Veja-se o menosprezo ao papel das ONGs, a subversão dos recursos descentralizados e a contaminação do Ministério da Saúde pelo fundamentalismo religioso, visando ganhos eleitorais e supostas garantias de governabilidade.
Por decisão política, a aids no Brasil deixou de ser um problema de saúde pública enfrentado no terreno da excepcionalidade. Nossa resposta no passado foi exemplar não só porque a doença em si era excepcional, pela catástrofe que representou, mas também pela existência do SUS e porque foi extraordinária a mobilização social que a epidemia suscitou. Esse movimento inédito na saúde influenciou por um bom tempo as reações dos poderes públicos, o financiamento, a conquista de marcos legais, a dotação dos programas de competência técnica, a valorização da sociedade civil e da academia na construção compartilhada e no acompanhamento das políticas.
O isolamento político do programa nacional– o que também é percebido em vários estados e municípios ¬ – , a tentativa de desqualificação de aliados históricos e o descolamento entre a ação governamental e a epidemia real são sintomas do desvio, nos últimos tempos, tanto da noção de urgência sanitária quanto do imperativo da ação coletiva, fundamentos que forjaram a trajetória do combate à aids no país.
Mas como retomar uma resposta vigorosa diante da epidemia que se banalizou e da política que se acovardou?
Primeiro, denunciando a paralisia que não se justifica do ponto de vista epidemiológico nem social, pois as mortes e as novas infecções só aumentam no Brasil e os contextos de vulnerabilidade que impactam na propagação do HIV estão longe de serem superados.
O segundo passo é romper com a atual vulnerabilidade programática da resposta brasileira à aids. Não podemos admitir a continuidade dos retrocessos num momento histórico internacional extremamente mobilizador.
Justamente quando o horizonte acena com a possibilidade de controle da epidemia a escalas jamais imagináveis, quando o mundo passa a pronunciar palavras como cura, erradicação, nível zero de infecções, conquista de uma geração livre da aids, o Brasil perde sua capacidade de inovar. Com a política apequenada, o cavalo passa selado e perdemos a oportunidade concreta de virar o jogo contra a epidemia.
Nossa história de lutas e nosso patrimônio coletivo nos permitem tirar o olho do retrovisor. Além do acesso aos antirretrovirais, a mais emblemática das conquistas, avançamos muito. O Brasil soube conjugar o combate à aids com a promoção dos direitos humanos, aprendeu que a prevenção requer respeito às escolhas individuais e a compreensão das vulnerabilidades , favoreceu uma tomada de consciência coletiva sobre a aids, combateu o estigma, embora persista em vários níveis a discriminação, ampliou o uso de preservativos e não teve receio de encarar temas tabus, como o sexo seguro e a redução de danos.
Os erros, porém, não foram menores que os acertos. É fruto da má política o fato de a aids dar sinais de recrudescimento em várias regiões, em capitais, em grandes áreas urbanas e em populações vulneráveis. Não é providência do destino encontrar, em cada seis homossexuais na cidade de São Paulo, um infectado pelo HIV. Deve ser motivo de vergonha nacional a persistência da transmissão vertical do HIV, que já poderia ter sido eliminada no Brasil.
Torna-se incompreensível a insistência numa prevenção generalizada que não dá conta do perfil nacional de uma epidemia concentrada. O diagnóstico tardio e a demora entre o teste positivo e o início do tratamento são violações correntes aos direitos dos cidadãos que vivem com HIV.
Enquanto campanhas de testagem em aglomerações visam a promoção de gestores, o teste rápido não está disponível em tempo integral nos serviços especializados e não chega às pessoas mais expostas ao HIV.
Falta transparência nas decisões que envolvem a estratégica produção nacional e formação de preços dos antirretrovirais. O Brasil ainda não garante a livre decisão dos cidadãos sobre todas as opções disponíveis e cientificamente validadas de prevenção, incluindo os métodos tradicionais mas também o acesso facilitado ao teste, o tratamento na hora certa e o uso de antirretrovirais antes ou depois do risco de infecção.
Para a construção de uma nova política, para a superação do modelo esgotado, a hora é de reconhecer os fracassos e de apostar no conhecimento acumulado e nas ferramentas disponíveis, aumentando os recursos e conjugando os esforços dos governos, serviços, profissionais, academia, ONGs e pessoas que vivem com HIV.
Da nova gestão do programa nacional, espera-se que assuma a real dimensão de uma epidemia em crescimento, abolindo de vez a divulgação seletiva de dados epidemiológicos e a censura às campanhas de prevenção. Que exerça seu papel de articulador da retaguarda assistencial, que degrada a olhos vistos. Reflexo do subfinanciamento e da gestão cada vez mais privatizada do Sistema Único de Saúde, é baixa a qualidade dos serviços municipais e estaduais que atendem HIV e aids, caóticos e supelotados, que não valorizam nem aderem profissionais qualificados.
Não ocorrerão avanços significativos sem o reconhecimento da crise vivida pelas ONGs, sem dar alternativas para a asfixia gerada pelo atual modelo de financiamento. O pluralismo das respostas da sociedade civil, marca do programa brasileiro, vem sendo aniqulado, pois muitas ONGs fecharam as portas ou abandonaram serviços e ações indispensáveis ao ativismo, à prevenção e à defesa de direitos.
É inadiável a convocação do ativismo, da epidemiologia, da vigilância, da assistência e das ciências sociais para que forneçam uma nova direção técnica para a prevenção, adaptada a diferentes pessoas e populações, incorporando as possibilidades de escolhas. Que seja produzido um inédito “consenso nacional de prevenção em HIV e aids” e que sejam perseguidas metas ousadas, como o alcance de meio milhão de brasileiros em tratamento com antirretrovirais.
Que os gritos das ruas sirvam de inspiração também para as mudanças no combate à aids, que o Brasil retome sua posição perdida de vanguarda, capaz de tirar do lugar indicadores estacionados, de alterar radicalmente a dinâmica da epidemia da aids, promovendo os direitos de cidadania das populações vulneráveis e das pessoas que vivem com HIV, reduzindo o número de adoecimentos, de mortes e de novas infecções.
Mário Scheffer é membro do Grupo Pela Vidda-SP e professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
E-mail: mscheffer@usp.br